Sozinho sem mais ninguém
Vai pedir o Pão-por-Deus
A quem quero tanto bem
Dia de Todos-os Santos. O dia em que as crianças, quando eu era criança, saíam à rua, em pequenos grupos ou até mesmo bandos, para pedir o Pão-por-Deus de porta em porta.
Lembro-me bem das alegrias. Muitos de nós não precisávamos, mas o prazer da aventura ultrapassava tudo. E era como se fosse Natal, ou até mais que isso. As pessoas nunca deixavam de abrir a porta e tinham sempre algo para dar. Nem que fossem três castanhitas apenas, aumentadas por um sorriso enorme que nos fazia, a nós, sorrir enormemente de volta.
As mães (ou, muitas vezes, as avós) costuravam-nos propositadamente “sacos de recolha” (em tecidos que iam da serapilheira ao feltro, conforme as posses) que voltavam a casa cheios de pão, broas, bolos, romãs, castanhas, nozes, amêndoas, rebuçados, chocolates, fruta e até mesmo algumas notas e moedas…
Um carrego muitas vezes quase a obrigar-nos a dobrar a espinha, tamanha era a solidariedade e a adesão. Famílias havia, como a minha, em que guardávamos depois apenas uma ou outra peça mais gulosa para nós e íamos em seguida, felizes, levar o espólio à igreja, para ser distribuído a quem realmente precisava.
Hoje, presumo que este costume tão português só possa manter-se, de facto, em aldeias. Apenas os pais mais loucos ou necessitados deixarão as suas crianças andar por aí, à solta, a bater a portas de desconhecidos.
E mesmo não considerando o aspecto da segurança, deveria ser no mínimo frustrante para as crianças, já que me lembro de ouvir algumas, nos últimos anos, queixarem-se do facto de ter sido eu o único a recebê-las, num prédio de seis andares.
Também me lembro de ver alguns destes anjinhos olhar-me cada vez mais de soslaio, de ano para ano, ao receberem castanhas, biscoitos ou rebuçados, com aquele ar de quem pensa “olha-me este gajo, dinheiro que é bom, não me dá…”. Foi em 2004, recordo-me bem.
O ano em que descobri que também muitas das crianças do Pão-por-Deus da cidade já estavam demasiado exigentes, mal-educadas e mal-agradecidas. E que tinham acabado os meus tempos de abrir a porta, vezes sem conta, a 1 de Novembro, para sorrir e ver sorrisos...
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