Geleia de marmelo. Totalmente caseira e não-licenciada mas, ainda assim, vendida em estabelecimento de restauração legalizado e afamado, ali para as bandas do não-digo-onde, porque há que proteger as coisas boas da perseguição da bufaria sanitarista. Sem rótulo e sem indicação de validade. Já sucumbi ao prazer de deglutir cinco legítimíssimas bolachas goumet do Pingo Doce pinceladas com esta iguaria que (so sorry, mother...) nada fica a dever, em sabor e consistência, à geleia feita pela progenitora, quando tinha saúde para andar à volta dos tachos.
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48 horas depois, ainda não morri, não sofri desarranjos intestinais nem sequer uma ou outra pintinha cutânea rosada, como quem diz "vais ter uma alergia". É capaz de ser natural. Se andamos, há anos, a comer num certo restaurante, sempre comemos do bom e do melhor e nunca tivemos um achaquezinho que fosse de saúde, porque haveríamos de não confiar e comprar um boião de doce caseiro feito pela cozinheira do dito estabelecimento? A vida tem destas coisas: nas relações humanas, mesmo que comerciais, há sempre a possibilidade de confiar nos outros. Afinal, poucas serão as expressões de liberdade tão rotundas e sem arestas como esta.
Na tutela das relações humanas, a Lei deve estar particularmente atenta (e ter regulamentação específica para ser aplicada, de forma certa e célere, pelas instâncias competentes) quando se trata de reparar os danos sofridos com a quebra da confiança. Ou seja, nomeadamente permitir-me exigir reparação adequada e proporcional, se a geleia estiver estragada. Só. Ponto final.
Em democracia, não pode ser o Estado a decidir, mandando, o que podemos ou não comer, fazendo terra queimada do princípio do bom senso do "homem médio". Em casos como o da geleia de marmelo "ilegal" - e tantos outros similares - a coisa fia, aliás, fino. Faço parte de uma geração que cresceu com saúde a comer queijo flamengo a granel, cortado à faca na mercearia, quando as máquinas fatiadoras e as luvas de latex sem sequer eram sonhadas. O mesmo para a marmelada. Hoje, admito que a coisa não era, de facto, o melhor da higiene. Mas não foi por isso que a minha geração e as precendentes sucumbiram à salmonela.
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Por isso, aqui fica o retrato da minha deliciosa geleia de marmelo, por esta altura já totalmente deglutida, com prazer e sem sequelas. À saúde da ASAE e de todas as novas, actuais e futuras, polícias dos costumes, mai'los seus exageros ridículos que cada vez têm menos graça (se é que alguma vez a tiveram).
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